O governo italiano implementou um decreto que introduz significativas restrições ao acesso à cidadania italiana por descendentes de italianos nascidos fora do país. Esta medida, que limita o direito ao reconhecimento da cidadania às duas primeiras gerações (filhos e netos) de emigrantes italianos, gerou debates acalorados e preocupações entre as comunidades de descendentes espalhadas pelo mundo, especialmente no Brasil, onde um grande número de pessoas busca o reconhecimento de suas raízes italianas. A justificativa oficial do governo italiano reside na alegação de que as regras anteriores, em vigor desde 1992, encontravam-se defasadas em relação às legislações de outros Estados europeus.
A Defasagem Alegada: Uma Comparação com Outras Legislações Europeias
A alegação de defasagem das leis italianas é sustentada pela análise das normas de cidadania em outros países da Europa. Diversas nações já adotam modelos mais restritivos para a transmissão da nacionalidade, particularmente no que concerne à cidadania por descendência.
O Modelo Restritivo da Cidadania do Reino Unido: Transmissão Limitada a uma Geração
O Reino Unido, por exemplo, opera com um sistema onde a cidadania por descendência nascida fora do país é transmitida por apenas uma geração. Isso significa que um indivíduo nascido no exterior com um genitor britânico pode adquirir a nacionalidade, mas seus filhos, caso também nasçam fora do Reino Unido, não herdarão automaticamente a cidadania britânica. Essa abordagem representa uma limitação significativa em comparação com o sistema italiano anterior, que, em princípio, permitia a transmissão da cidadania sem limite de gerações, desde que a linha de ascendência italiana fosse ininterrupta.
A Condição de Ascendente Vivo em Portugal: Uma Barreira Adicional a Cidadania
Portugal também impõe condições mais rigorosas para o reconhecimento da cidadania além da segunda geração. Nesse país, para que um descendente de terceira geração ou posterior obtenha a cidadania portuguesa, é necessário que ao menos um ascendente direto (pai ou avô/avó) esteja vivo e realize o processo de reconhecimento da própria cidadania (como filho ou neto) para, somente então, poder transmiti-la ao descendente seguinte. Essa exigência introduz um fator de tempo e dependência da ação de um ascendente vivo, o que não era uma condição geral no sistema italiano pré-decreto.
A Rigidez Italiana no Direito de Solo: Um Contraponto à Transmissão por Sangue
Em contraste com as restrições impostas à cidadania por descendência, a Itália historicamente manteve uma das legislações mais rigorosas em relação ao ius soli (direito de solo). Sob as regras italianas, a cidadania automática pelo nascimento no território nacional é concedida apenas em casos excepcionais, como para crianças de pais desconhecidos ou apátridas. Filhos de estrangeiros nascidos na Itália geralmente não adquirem a cidadania italiana ao nascer, diferentemente de outros países europeus que adotam um ius soli mais amplo ou facilitado sob certas condições de residência dos pais.
As Diferentes Regras de Cidadania nos Principais Países Europeus: Um Panorama Detalhado
Para uma compreensão mais aprofundada das mudanças implementadas pela Itália e seu contexto europeu, é essencial analisar as regras de cidadania em outros países relevantes:
Cidadania Alemã: Uma Combinação de Sangue e Solo com Condições
A Alemanha adota um sistema misto de ius sanguinis (direito de sangue) e ius soli (direito de solo), com nuances importantes:
- Por Descendência (Direito de Sangue): A transmissão da cidadania alemã é automática para a criança que nasce de pai ou mãe com cidadania alemã. No entanto, desde o ano 2000, uma regra específica se aplica a genitores alemães nascidos no exterior e seus filhos também nascidos fora da Alemanha. Nesses casos, a criança somente terá a cidadania alemã concedida se for (ou tiver sido) registrada junto às autoridades alemãs até completar o seu primeiro ano de vida. Essa exigência de registro precoce introduz uma condição temporal para a transmissão da cidadania em casos de nascimento no exterior em famílias de emigrantes alemães.
- Por Nascimento na Alemanha de Genitores Estrangeiros (Direito de Solo): Filhos de estrangeiros nascidos na Alemanha podem ser reconhecidos como cidadãos alemães sob certas condições. É necessário que ao menos um dos genitores resida legalmente na Alemanha por um período mínimo de cinco anos no momento do nascimento da criança e possua um visto de residência permanente. Essa modalidade de ius soli condicionado demonstra uma abertura à integração de crianças nascidas em território alemão, mas com requisitos específicos de residência dos pais.
- Por Casamento: A legislação alemã permite que um estrangeiro solicite a cidadania após dois anos de casamento com um cidadão ou cidadã alemã e comprovar três anos de residência legal na Alemanha. Esse caminho para a cidadania reconhece o vínculo familiar e a integração social através do matrimônio.
- Por Tempo de Residência: Em 2024, a lei alemã passou a permitir que estrangeiros residentes legalmente no país possam solicitar a cidadania após cinco anos de residência, reduzindo o prazo anterior de oito anos. Os requerentes devem demonstrar capacidade de se sustentar financeiramente, possuir bom conhecimento da língua alemã e não ter cometido crimes. Essa alteração recente reflete uma política de naturalização mais flexível para residentes de longo prazo.
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Cidadania Britânica: Ênfase no Vínculo Direto e Residência
A cidadania britânica apresenta diferentes vias de aquisição, com forte ênfase no nascimento no Reino Unido e na residência legal:
- Por Descendência (Direito de Sangue): A transmissão automática da cidadania ocorre se a pessoa nasce no Reino Unido e tem ao menos um genitor com cidadania britânica. Para nascimentos fora do Reino Unido, a cidadania é transmitida por apenas uma geração. Assim, um indivíduo nascido no exterior de um genitor britânico pode obter a nacionalidade, mas seus filhos nascidos também no exterior não serão automaticamente cidadãos britânicos. Essa limitação generacional é um ponto crucial da lei britânica.
- Por Nascimento no Reino Unido de Genitores Estrangeiros (Direito de Solo): Uma criança nascida no Reino Unido de pais estrangeiros adquire automaticamente a cidadania britânica se, no momento do seu nascimento, pelo menos um dos genitores (nascido no exterior) residia no Reino Unido e possuía um visto de permanência por tempo indeterminado. Essa regra protege os direitos de crianças que crescem no Reino Unido, mesmo que seus pais não sejam cidadãos.
- Por Casamento: Um estrangeiro casado com um cidadão britânico pode solicitar a cidadania após viver no Reino Unido por pelo menos três anos ou assim que obtiver o visto de permanência por tempo indeterminado para entrar ou permanecer no país. Além disso, é necessário comprovar conhecimento da língua inglesa, ser aprovado em um teste sobre a história e os valores britânicos e demonstrar “bom caráter”.
- Por Tempo de Residência: A solicitação da cidadania é possível após cinco anos comprovados de residência no Reino Unido e 12 meses após a obtenção do visto de permanência por tempo indeterminado. Similarmente ao processo por casamento, o requerente deve comprovar conhecimento de inglês, passar no teste de conhecimentos e ter “bom caráter”.
Cidadania Espanhola: Uma Abordagem Facilitada para Descendentes e Vínculos Culturais
A Espanha possui regras que consideram fortemente os laços históricos e culturais, especialmente com a América Latina:
- Por Descendência (Direito de Sangue): Além de indivíduos nascidos na Espanha com ao menos um genitor espanhol, a Lei da Memória Democrática (de 2022) permite, até outubro de 2025, que filhos e netos de espanhóis nascidos no exterior adquiram a cidadania espanhola sob certas condições. Essa lei temporária visa reparar injustiças históricas e facilitar o retorno de descendentes de emigrantes espanhóis.
- Por Nascimento na Espanha de Genitores Estrangeiros (Direito de Solo): Crianças nascidas na Espanha de pais estrangeiros têm direito à cidadania espanhola automaticamente se ao menos um dos genitores também nasceu na Espanha. Essa disposição demonstra uma consideração pelo local de nascimento e pelos laços familiares estabelecidos no país.
- Por Casamento: Um estrangeiro casado com um cidadão espanhol pode solicitar a cidadania após um ano de residência legal na Espanha e de casamento. Esse prazo relativamente curto reflete o reconhecimento do vínculo matrimonial como um fator de integração.
- Por Tempo de Residência: Em geral, são necessários dez anos de residência legal na Espanha para solicitar a cidadania. No entanto, esse prazo é significativamente reduzido para cidadãos de países latino-americanos, Portugal, Filipinas, entre outros (apenas dois anos), e para indivíduos nascidos no exterior com um genitor ou um dos avós nascido em território espanhol (apenas um ano). Em todos os casos, é preciso demonstrar conhecimento do idioma espanhol e não possuir antecedentes criminais.
Cidadania Francesa: Uma Combinação Complexa de Origem e Local de Nascimento
A França apresenta um sistema de cidadania que equilibra o direito de sangue com o direito de solo, com particularidades notáveis:
- Por Descendência (Direito de Sangue): A cidadania francesa é transmitida automaticamente se ao menos um dos genitores for cidadão francês, independentemente do local de nascimento da criança. Para descendentes nascidos no exterior, o reconhecimento da cidadania é possível, desde que não haja “salto de geração”. Isso significa que um neto de um francês só pode solicitar a cidadania após o seu genitor ter obtido o reconhecimento da nacionalidade francesa. Nesses casos, é necessário comprovar o vínculo contínuo da família com a França, através da renovação de documentos e da participação em eleições francesas.
- Por Nascimento na França de Genitores Estrangeiros (Direito de Solo): Uma criança nascida na França de dois genitores estrangeiros adquire a cidadania francesa automaticamente se ao menos um dos genitores também nasceu na França (mesmo que não seja cidadão francês). Fora desse cenário, um dos genitores pode solicitar a cidadania francesa para o filho entre 13 e 15 anos se ele nasceu na França e reside no país desde os 8 anos de idade. Aos 16 anos, o próprio jovem pode requerer a cidadania se nasceu e morou na França por um período mínimo de cinco anos desde os 11 anos de idade. Essas disposições demonstram uma integração progressiva através da educação e residência no território francês.
- Por Casamento: Um estrangeiro pode solicitar a cidadania francesa após quatro anos de casamento com um cidadão francês, desde que cumpra certos requisitos. O cônjuge francês deve possuir a cidadania francesa desde a data do casamento (e não a adquirir posteriormente), e o estrangeiro deve possuir um visto de residência (se não for cidadão de um país europeu), comprovar conhecimento da língua francesa e não ter antecedentes criminais. Se o estrangeiro residiu na França por menos de três anos após o casamento, o prazo para a obtenção da cidadania é estendido para cinco anos.
- Por Tempo de Residência: A cidadania francesa pode ser solicitada após cinco anos de residência legal na França. O requerente deve comprovar conhecimento da história e da cultura francesa, possuir proficiência na língua francesa, aderir aos valores da República Francesa, ter uma fonte de renda estável e apresentar um histórico criminal limpo. Cidadãos de países não europeus também precisam possuir um visto de permanência válido.
Cidadania Portuguesa: Ênfase na Ligação Efetiva e Histórica
As regras de cidadania portuguesa, como mencionado anteriormente, apresentam particularidades em relação à transmissão por descendência:
- Por Descendência (Direito de Sangue): Filhos de cidadãos portugueses nascidos em Portugal ou no estrangeiro são automaticamente portugueses. Netos de portugueses nascidos no estrangeiro podem adquirir a cidadania portuguesa se comprovarem laços efetivos com Portugal. Além da segunda geração, como já explicitado, o reconhecimento da cidadania depende da condição de o ascendente direto estar vivo e requerer a própria cidadania para depois transmiti-la. Essa exigência de “laços efetivos” e a necessidade de ação do ascendente vivo introduzem um grau de complexidade no processo para descendentes mais distantes.
- Por Nascimento em Portugal de Genitores Estrangeiros (Direito de Solo): Crianças nascidas em Portugal de pais estrangeiros podem adquirir a nacionalidade portuguesa se um dos pais residir legalmente em Portugal há pelo menos um ano no momento do nascimento. Essa regra demonstra uma abertura limitada ao ius soli, condicionada à residência dos pais.
- Por Casamento: Um estrangeiro casado com um cidadão português pode adquirir a nacionalidade portuguesa após três anos de casamento, desde que comprove laços efetivos com a comunidade portuguesa.
- Por Tempo de Residência: Estrangeiros podem solicitar a cidadania portuguesa após cinco anos de residência legal em Portugal, desde que possuam conhecimento suficiente da língua portuguesa e demonstrem laços com a comunidade portuguesa.
Cidadania Italiana (Pós-Decreto): Novas Limitações e Condições
As regras de cidadania italiana, após a implementação do decreto, sofreram alterações significativas, especialmente no que concerne à transmissão por descendência:
- Por Descendência (Direito de Sangue): Se a criança nasce na Itália e tem ao menos um genitor cidadão italiano (nascido em qualquer lugar), a cidadania é automática. Para crianças nascidas fora da Itália, as regras foram alteradas a partir de 28 de março de 2025. O decreto estabelece que uma criança nascida no exterior somente poderá obter a cidadania italiana se:
- Ao menos um dos genitores cidadãos italianos também nasceu na Itália.
- Ao menos um dos genitores cidadãos italianos residiu legalmente e ininterruptamente na Itália por um período mínimo de dois anos.
- Ao menos um dos avós cidadãos italianos nasceu na Itália.
Adicionalmente, o decreto impõe um limite de duas gerações para o pedido de reconhecimento da cidadania italiana por descendência nascidos no exterior. Isso significa que bisnetos ou gerações posteriores de italianos emigrados não terão mais o direito automático ao reconhecimento da cidadania, a menos que se enquadrem nas novas condições estabelecidas (nascimento do genitor ou avô na Itália, ou residência do genitor por dois anos na Itália).
- Por Nascimento na Itália de Genitores Estrangeiros (Direito de Solo): O ius soli na Itália continua sendo aplicado de forma restrita. A cidadania automática por nascimento em território italiano é concedida apenas em casos raros, quando a criança é filha de pais desconhecidos ou apátridas. Filhos de estrangeiros nascidos na Itália somente podem solicitar a cidadania italiana entre os 18 e 19 anos de idade, caso tenham residido legalmente e sem interrupção na Itália e comprovado frequência escolar durante esse período.
- Por Casamento: Um estrangeiro que se casa com um cidadão italiano pode solicitar a cidadania italiana sob certas condições. Se o casal reside na Itália, o pedido pode ser feito após dois anos de casamento e residência legal no país. Se o casal reside no exterior, o prazo é de três anos de casamento. Em ambos os casos, o requerente deve possuir um certificado de proficiência na língua italiana.
- Por Tempo de Residência: Um estrangeiro pode solicitar a cidadania italiana após dez anos de residência legal e ininterrupta na Itália. Esse prazo é reduzido para quatro anos para cidadãos de países da União Europeia. O requerente deve comprovar renda suficiente para sustentar a família, possuir conhecimento da língua italiana e não ter antecedentes criminais.
Conclusão: O Impacto do Decreto Italiano e o Cenário Europeu
O novo decreto italiano sobre a cidadania por descendência representa uma mudança significativa em relação ao sistema anterior, alinhando a Itália com outros países europeus que já possuíam restrições mais severas. A justificativa de defasagem legal encontra respaldo na comparação com as legislações do Reino Unido e Portugal, que impõem limites generacionais ou condições adicionais para a transmissão da cidadania a descendentes nascidos no exterior.
No entanto, é crucial notar que cada país europeu possui um sistema de cidadania moldado por sua própria história, demografia e políticas de imigração. Enquanto alguns países, como a Espanha, adotam abordagens mais facilitadoras para descendentes de seus emigrantes, outros, como o Reino Unido, priorizam o vínculo direto e a residência no território nacional. A Alemanha e a França apresentam modelos mais complexos que combinam elementos de ius sanguinis e ius soli, com condições específicas para a aquisição da cidadania em diferentes cenários.
O impacto do decreto italiano será sentido principalmente pelas gerações mais distantes de emigrantes italianos, que agora enfrentarão maiores dificuldades para obter o reconhecimento da cidadania. A exigência de que o genitor ou avô tenha nascido na Itália, ou que o genitor tenha residido por um período significativo no país, introduz um obstáculo para muitos descendentes que mantiveram um vínculo cultural e ancestral com a Itália, mas cujos antepassados emigraram há muitas gerações.
A necessidade de confirmação do decreto pelo Parlamento italiano até o final de maio de 2025 abre uma janela para possíveis debates e alterações. No entanto, o cenário atual indica uma tendência na Europa de maior controle e restrição na transmissão da cidadania por descendência, refletindo preocupações com a gestão da nacionalidade e a integração de novos cidadãos. A análise comparativa das diferentes legislações europeias oferece um contexto importante para compreender as mudanças implementadas pela Itália e as diversas abordagens adotadas pelos países do continente em relação a um tema tão sensível e relevante para milhões de pessoas em todo o mundo.